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segunda-feira, outubro 27, 2003

O RECURSO 

Não sendo um entusiasta, ou sequer defensor do Código de Hamurabi, da Pena de Talião-o tão famoso olho por olho dente por dente-ou mesmo da pena de morte ou outros infames atentados à vida e à dignidade humana, não posso no entanto não estar em total desacordo com os argumentos usados pela Comissão de Utentes do IC19, que no Tribunal de Opinião, reunido para julgar o Governo num processo sobre a falta de cumprimento das promessas sobre a resolução dos problemas com a malfadada via relacionados.
Rezava o acórdão final: “É pois o Governo não condenado à pena de percorrer o IC 19, diariamente nos dois sentidos, às horas de ponta e sem batedores, pedida pela acusação, porque a constituição não permite penas infamantes ou maus tratos, sendo por isso condenado ao cumprimento das promessas, sob pena de ter de se demitir”.
Ora bolas, assim não, então vamos dar palmadinhas nas costas a quem só nos dá filas, esperas e fumos de escape?!
Alegar que a constituição não permite penas infamantes é esquecer que é exactamente uma pena desta categoria que é imposta todos os dias ao infeliz morador daquelas paragens.
Não concordo de maneira nenhuma com tal sentença, apesar da minha veia pacifista, não posso aceitar tal brandura, não posso aceitar que o desgraçado do utente diário da via caracol, talvez a mais entupida da Europa em parte por causa do desregramento das licenças de construção e a falta de soluções dos sucessivos governos, perca todos os dias entre três e quatro horas naquele calvário motoriz(par)ado, sem que o governo se digne mexer uma palha que seja, e o douto tribunal peça uma mera pena de demissão?!
Não meus amigos, não posso aceitar, estou até chocado com tal decisão, e prometo desde já que não vou ficar quieto, vou seguir a moda mais recente de que ouvimos falar todos os dias, e vou interpor recurso à instância superior, que não faço ideia de quem seja, mas que prometo descobrir em breve, exigindo que se não houver respostas rápidas e eficazes, além de demitidos sejam os ilustres membros do governo sujeitos ao cumprimento do resto do pedido da acusação, o tal castigo da descida diária ao inferno rodoviário por definição.
Era o que faltava, depois de toda esta tortura infligida aos pobres utentes, escaparem só com um simples pedido de demissão!
Era o que faltava!!

A FITA 

A fita

Como sabem gosto de cinema, por isso estou se calhar mais atento, e aqui vos estou aconselhando a que abram bem os olhos e os ouvidos, pois descobri que graças a rebuscado sistema do qual ainda não descortinei o funcionamento, apurar os sentidos é quanto basta, nem vídeos caseiros nem salas de projecção, para assistirem, sem esforço, a um filme que nos vai acompanhando, sub-reptício, dia após dia.
É verdade que é uma fita de série B, a lembrar o filme negro americano do século passado, com um grão enorme como deve ser no caso, com a película a partir-se volta que não volta, como nas gloriosas matinées da minha adolescência, mas com uma trama, um argumento de tal modo fascinante que me quer parecer que aquela comédia burlesca que ameaçava ser o filme do ano, “O ciborgue predador das laranjas californianas”, com aquela actuação inesquecível do homem que passa o filme a grunhir, vai perder por larga margem para este bem conseguido thriller que eu arriscaria colocar na louca corrida às horrendas estatuetas que todos os anos se distribuem do outro lado do Atlântico, e onde há vilões com o terrível vício de escutar tudo o que podem desde portas de residências até às casas de banho do lado, juízes que avançam com determinação para logo recuarem sem ninguém perceber o que mudou, jornalistas completamente histéricos a fazer reportagens em sítios completamente desertos e a reportarem exactamente isso, que ali não se passa nada há pelo menos quatro ou cinco horas, num exercício de suspense de fazer corar de inveja o grande Hitchcock, com os espectadores presos à espera de ver surgir a qualquer momento uma cabala cavalgando um acórdão e trazendo à ilharga os despojos de um preso preventivo, ou quiçá ver um dos actores secundários depois de valentemente zurzido num assomo de coragem e correndo sérios riscos de acabar com um balázio na testa na forma das próprias palavras transformadas em boomerang assassino, a desafiar sem temores as obscuras forças das trevas com expressões do mais vernáculo vocabulário, indo assim ao mais profundo da nossa alma comum.
Há de tudo neste épico filme, desde actrizes que pensávamos afastadas como Catherine Deneuve, até ministros possuídos por forças demoníacas que vão ao estrangeiro procurar socorro para os seus diabólicos impulsos, passando por xeriffes que de cada vez que falam mais parece que dispararam um daqueles canhões do Tirmanator 3, num curioso tributo ao actor principal da outra fita de que vos falámos.
Por detrás de toda esta intriga, e como não podia deixar de ser para apimentar o enredo, está o sexo na sua forma mais repugnante, com descrições terríveis de crimes de abuso, crianças marcadas para toda a vida, e uma leve, quase apenas sugerida, atmosfera de Máfia que nos deixa a sensação de que quem se vai lixar no meio disto tudo é mesmo o mexilhão, num contributo decisivo para a qualidade e excelente concepção do script.
É pena não podermos dar-vos aqui um trailer desta magnífica obra, que talvez só peque pela sua extraordinária duração, o que se calhar também contribuirá para que se venha a tornar um filme de culto, que leva a um esforço sobre humano de quem se dispõe a acompanhá-lo até ao fim, mas vale a pena, pois nem Hollywood no seu melhor pariu alguma vez algo que se lhe assemelhasse.
Às vezes tem alguns planos mais parados, tipo Manuel de Oliveira, como aquele plano do rapaz do filme a ser filmado à porta de uma casa de penhores, plano que levou logo imensas donas de casa a murmurarem com voz repassada de emoção: “coitado do homem já não lhe chegava o molho de brócolos em que se meteu e ainda tem que se empenhar…”, repetidamente passado durante o filme, mas logo de seguida ganha acção com uma cena também repetida inúmeras vezes, talvez por o realizador, que, curiosamente, desconhecemos, ter sido algum falhado corredor de fundo cá do rectângulo, que é a de uma turba imensa, que às vezes dá a sensação de furiosa ir fazer justiça pelas próprias mãos à pessoa errada, sim porque o rapaz do filme é o justiceiro lá do sítio, sempre embrenhado nuns escritos muita confusos que ninguém entende e contra o qual todos reclamam, correndo desalmadamente atrás do justiceiro em fuga para ver se consegue comer um bolito e beber uma meia de leite de modo a voltar mais aconchegado para a sua especialidade que são os interrogatórios aos maus pela noite dentro, até altas horas, o que levou até alguns dos tais corredores de fundo, que ninguém me tira da cabeça estarem a fazer o papel de jornalistas, mas de uma forma caricaturada, outro grande achado do filme em minha opinião, a afirmarem que passa mas é as noites a jogar à batota com os outros actores.
Há ainda zangas entre irmãos, facadas nas costas, enfim um sem número de cenas cada uma mais notável do que a outra, algumas a roçar o surrealismo, outra grande opção do argumentista, que merecem a vossa atenção.
Não percam por isso esta fita, curioso, também não lhe conheço o nome, num país perto de si!


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